História da Umbanda: trajetória e desafios para o reconhecimento de uma religião brasileira

Pessoa meditando em meio à luta contra a inveja.

A Umbanda compõe o cenário religioso brasileiro desde o início do século XX, mas sua formação resulta de um processo bem mais antigo, ligado à diáspora africana, ao contato com populações indígenas e às transformações socioculturais que marcaram o país. A religião ganhou notoriedade por sua diversidade de ritos, por não apresentar uma liturgia padronizada e por se organizar em terreiros autônomos, cada qual com práticas próprias. Esta reportagem reconstrói, passo a passo, os principais eventos, personagens e circunstâncias que moldaram a história da Umbanda, destacando tanto o mito fundador de 1908 quanto as raízes que antecedem esse marco.

Variação de práticas e ausência de uniformidade

Desde que passou a ser identificada como religião, a Umbanda chamou atenção pela variedade de formas de culto. Um mesmo orixá pode receber saudações, cânticos e oferendas distintos, dependendo de cada centro. Essa pluralidade resulta do entrelaçamento de referências africanas, indígenas e cristãs, somado à autonomia dos dirigentes espirituais que definem regras específicas para seus núcleos. Assim, a fé umbandista não se organiza por meio de um corpo doutrinário centralizado, o que contribui para interpretações diferentes sobre a origem das entidades espirituais, o simbolismo dos rituais e a natureza dos trabalhos religiosos.

A multiplicidade interna, por vezes, gera dúvidas externas a respeito da identificação da Umbanda enquanto religião unificada. Contudo, pesquisadores apontam que justamente a capacidade de absorver influências culturais distintas explica a rápida expansão da crença em várias regiões do Brasil, sobretudo a partir do século XX. Para compreender como tal diversidade se constituiu, é preciso retroceder às experiências religiosas africanas que desembarcaram no país em contextos de escravidão e colonização.

A formação do mito fundador em 1908

Um dos eventos mais citados quando se aborda a história da Umbanda ocorreu em 15 de novembro de 1908, em Niterói (RJ). Na data, o jovem Zélio Fernandino de Moraes, proveniente de família de classe média, participou de sessão na Federação Espírita de Niterói. Durante a reunião, teria incorporado o espírito do Caboclo das Sete Encruzilhadas, entidade que anunciou a criação de uma nova religião, destinada a acolher espíritos não aceitos nos círculos kardecistas, tais como caboclos, pretos-velhos e crianças.

No dia seguinte, os primeiros trabalhos foram realizados na residência de Zélio, inaugurando a Tenda Nossa Senhora da Piedade. O espaço funcionou como ponto de encontro para médiuns expulsos de centros espíritas por manifestar entidades consideradas inadequadas pelo kardecismo da época. O relato passou a circular como narrativa de fundação da Umbanda e, ao longo das décadas seguintes, foi reproduzido em livros e artigos especializados.

A autoridade do episódio de 1908 ganhou reforço após a década de 1940, principalmente quando institutos e federações umbandistas buscavam legitimar a religião diante da sociedade e do Estado. Embora reconhecido como marco simbólico, tal fato não esgota o percurso que levou à consolidação da Umbanda. Pesquisas históricas indicam que as práticas que a compõem existem há mais tempo, vinculadas a tradições trazidas por africanos escravizados e reinventadas em território brasileiro.

Tenda Nossa Senhora da Piedade e primeiro núcleo de fiéis

Localizada inicialmente no bairro de Neves, em Niterói, a Tenda Nossa Senhora da Piedade tornou-se referência para adeptos que desejavam cultuar entidades populares sem romper completamente com o espiritismo kardecista. A presença de Zélio de Moraes como dirigente espiritual ajudou a atrair frequentadores de perfil social variado, inclusive integrantes das camadas médias urbanas.

No interior da tenda, rituais combinavam passes, rezas, cantos em língua portuguesa e toques de instrumentos de percussão. O sincretismo com o catolicismo se manifestava no uso de imagens sacras, enquanto a hierarquia espiritual se estruturava em torno de guias que incluíam caboclos, pretos-velhos, crianças e, em menor escala, entidades designadas como exus. A difusão desses trabalhos estimulou a abertura de outros centros pelo Rio de Janeiro e, em seguida, por São Paulo, Bahia e estados do Sul.

Congresso de 1941 e esforços de institucionalização

O Primeiro Congresso Brasileiro de Umbanda, realizado no Rio de Janeiro, em 1941, marcou a tentativa de sistematizar preceitos e estabelecer critérios de organização para terreiros espalhados pelo país. Participantes discutiram, entre outros pontos, a definição da data de origem da religião, reforçando o episódio de 1908 como referência oficial. Também buscaram diferenciar a Umbanda de práticas classificadas como macumba carioca, numa estratégia de aproximar a religião de valores considerados nacionais à época.

Ao defender identidade brasileira desvinculada do passado africano, lideranças presentes no congresso reproduziam concepções nacionalistas que atribuíram ao negro a responsabilidade por supostos atrasos do país, ideias articuladas por autores como Sílvio Romero e Nina Rodrigues. Esse posicionamento expressava o desejo de parte dos umbandistas de afastar possíveis estigmas associados ao candomblé e às religiões de matriz africana visivelmente negras. Ainda assim, a presença de orixás, pontos cantados e elementos rituais provenientes da África permaneceu na prática cotidiana dos terreiros.

Raízes anteriores à data de fundação

Embora o mito fundador concentre grande parte da memória institucional da Umbanda, suas bases foram lançadas bem antes, durante o período colonial e imperial. A chegada de navios negreiros introduziu cultos africanos que sobreviveram em senzalas, quilombos e confrarias. Ao longo do século XIX, centros de culto aos orixás, que mais tarde seriam chamados de candomblés, estabeleceram-se principalmente na Bahia, preservando línguas, tambores e mitologias de origem iorubá, jeje e banto.

Paralelamente, homens e mulheres negros livres ou libertos desenvolveram em cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador atividades religiosas fora dos templos formais. Esses líderes, popularmente designados feiticeiros, ofereciam serviços de cura, aconselhamento e proteção espiritual, competindo com a Igreja Católica e com a nascente medicina oficial. O Estado imperial, por sua vez, considerava tais práticas crime de curandeirismo ou estelionato. Quando algum feiticeiro ganhava projeção, autoridades aplicavam penas que variavam de prisão a deportação.

Feiticeiros negros e circulação de saberes mágicos

Os espaços comandados por feiticeiros funcionavam em barracões, quintais ou cômodos residenciais. Neles, misturavam-se cantigas africanas, rezas católicas, uso de ervas medicinais, benzimentos e ritos indígenas voltados à natureza. Não havia um código ritual fixo; as atividades seguiam as determinações do responsável pelo local, que podia receber o título de pai de santo, curandeiro ou simplesmente feiticeiro.

Nesse ambiente, a distinção entre culto religioso e prática mágica não era nítida. As pessoas buscavam tratamento para enfermidades, solução de conflitos amorosos e proteção contra infortúnios. O atendimento a pagantes de diferentes classes sociais ajudou a disseminar o repertório simbólico africano entre brancos, mestiços e imigrantes europeus, gerando conexões que mais tarde seriam incorporadas pela Umbanda.

A consolidação do sincretismo

Estudiosos da religião denominam sincretismo o processo de junção de elementos variados em uma mesma manifestação de fé. Na Umbanda, esse fenômeno se expressa, por exemplo, na identificação de orixás com santos católicos: Oxóssi é associado a São Sebastião, Iemanjá a Nossa Senhora da Conceição, entre outros paralelos. Além disso, a incorporação de caboclos — espíritos que representam a ancestralidade indígena — acrescenta componentes ameríndios à liturgia.

O sociólogo Roger Bastide cunhou o termo macumba para designar o conjunto de práticas mágicas e musicais que se desenvolveu no Rio de Janeiro, resultante da convergência entre ritos africanos, católicos e ameríndios. Para Bastide, era nesse ambiente de efervescência cultural que a Umbanda encontrava caldo fértil para emergir. Ao adotar recursos da macumba, como pontos cantados e linhas de trabalho espiritual, a religião incorporou conhecimento acumulado por gerações de praticantes.

Tentativas de regulamentação e desafios posteriores

A partir de meados do século XX, federações estaduais de Umbanda buscaram registrar estatutos e criar normas para a prática dos cultos, com o objetivo de proteger terreiros contra perseguições e garantir reconhecimento jurídico. Algumas organizações elaboraram cartilhas sobre ética mediúnica, como duração de sessões, vestimentas e comportamento dos fiéis. Apesar desses esforços, a realidade permaneceu heterogênea, pois cada dirigente mantinha autonomia para adaptar orientações conforme a necessidade local.

No fim da década de 1960, a repressão a manifestações populares durante o regime militar afetou parte dos terreiros, que passaram a adotar postura discreta quanto a batuques e cortejos públicos. Ainda assim, a expansão para bairros periféricos de grandes cidades reforçou o número de seguidores. O acesso crescente a estudos universitários sobre religiões afro-brasileiras, nas décadas de 1970 e 1980, contribuiu para maior visibilidade acadêmica do culto.

Umbanda no século XXI

O Censo Demográfico de 2010 indicou crescimento dos adeptos da Umbanda em algumas capitais do Sudeste e do Sul. Diversos fatores influenciam o cenário contemporâneo, incluindo maior abertura religiosa, produção de livros e canais digitais dedicados ao tema, além do diálogo com movimentos sociais que defendem a liberdade de crença. Mesmo com avanços, relatos de intolerância persistem, sobretudo em regiões onde fiéis enfrentam invasões de templos e tentativas de proibição de rituais com música ou oferendas.

Analistas observam que a religião continua a se redefinir, absorvendo novos símbolos e ajustando sua linguagem para dialogar com públicos urbanos. Alguns terreiros introduzem estudos kardecistas sistemáticos, enquanto outros enfatizam o vínculo com tradições africanas, aproximando-se do candomblé. Essa contínua reinvenção confirma a flexibilidade apontada no início deste texto como característica fundamental da Umbanda.

Elementos essenciais que marcam a trajetória da Umbanda

Ao reunir os pontos discutidos, torna-se possível destacar aspectos centrais para entender a formação e a evolução da Umbanda:

  • A religião não possui corpo dogmático rígido; cada terreiro estrutura sua prática de forma autônoma.
  • O mito fundador de 15 de novembro de 1908, protagonizado por Zélio de Moraes e o Caboclo das Sete Encruzilhadas, atua como marco simbólico, mas não resume a origem histórica do culto.
  • O sincretismo com catolicismo, tradições indígenas e espiritismo kardecista foi determinante para a expansão da fé.
  • Lideranças do século XIX, conhecidas como feiticeiros, pavimentaram o caminho para a futura configuração da Umbanda, ao manter práticas afro-descendentes vivas fora dos candomblés.
  • O Primeiro Congresso Brasileiro de Umbanda, em 1941, representou tentativa de institucionalização e reforço de uma identidade dita brasileira, buscando distanciamento de marcas africanas em meio a ideologias nacionalistas.
  • A religião permanece sujeita a ameaças de intolerância, mas também a um processo constante de expansão e adaptação.

Entender a história da Umbanda implica, portanto, reconhecer tanto a legitimidade do mito fundador quanto a complexidade das influências anteriores, que remontam à chegada dos primeiros africanos escravizados. A religião nasceu e se desenvolveu em meio a tensões sociais, perseguições legais e diálogo intercultural, elementos que explicam sua pluralidade atual.

Fonte: Umbanda Eu Curto

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