Umbanda: fundamentos, história e práticas de uma religião brasileira centenária

A Umbanda é uma religião brasileira que reúne elementos de origens diversas e se firmou, desde o início do século XX, como um caminho espiritual baseado na caridade, no respeito à natureza e na comunicação entre o plano material e o plano espiritual. Fundada em 1908, no Rio de Janeiro, sua estrutura doutrinária engloba conceitos de matrizes africanas, influências do espiritismo kardecista, referências do catolicismo popular e tradições indígenas. Ao longo dos anos, esse conjunto de saberes ganhou características próprias, consolidando-se como uma expressão religiosa que valoriza a inclusão, a prática do bem e o amparo universal.

Origem histórica e fundador

A identificação do nascimento formal da Umbanda remonta a 15 de novembro de 1908, data em que o jovem médium Zélio Fernandino de Moraes, então com 17 anos, teria recebido a manifestação espiritual conhecida como Caboclo das Sete Encruzilhadas. Esse acontecimento ocorreu na antiga Federação Espírita de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. O fato é apontado por praticantes e estudiosos como marco inicial da religião. Após essa primeira incorporação, reuniões semanais passaram a ser realizadas em uma tenda denominada Tenda Nossa Senhora da Piedade, situada no bairro de Neves, também em Niterói. Ali se delinearam as bases litúrgicas que, mais tarde, se disseminariam por vários pontos do país.

As narrativas sobre Zélio Fernandino de Moraes destacam seu trânsito prévio por centros espíritas kardecistas, ambiente onde já se exercitava a mediunidade. Contudo, o Caboclo das Sete Encruzilhadas apresentou diretrizes distintas, propondo um culto que combinasse a prática mediúnica com referências a divindades africanas (Orixás) e a valores indígenas. O objetivo declarado era construir um espaço aberto a todos, independentemente de origem social ou condição financeira, priorizando a prestação de ajuda espiritual gratuita.

Sincretismo e composição religiosa

A característica mais evidente da Umbanda é a convergência de tradições. Quatro vertentes principais formam a base do culto:

Matriz africana – Contribui com o conceito dos Orixás, divindades que representam forças da natureza e regem aspectos da vida humana. Entre eles estão Oxóssi, ligado às florestas e à fartura; Iemanjá, associada aos mares; Xangô, relacionado ao fogo e à justiça; e Oxum, conectada às águas doces e ao amor.

Espiritismo kardecista – Introduz a ideia de evolução da alma por meio de sucessivas encarnações, a lei de causa e efeito e a possibilidade de comunicação entre vivos e espíritos desencarnados. Também reforça a noção de caridade como instrumento essencial de crescimento moral.

Catolicismo popular – A herança católica aparece em orações, velas e imagens de santos presentes no congá (altar). Muitos Orixás foram associados a santos, prática que facilitou a aceitação da nova religião em um contexto social marcado pelo catolicismo predominante.

Tradições indígenas – A influência dos povos originários é notada no respeito às florestas, nos cantos que evocam elementos da terra e na figura dos Caboclos, entidades que simbolizam a sabedoria nativa.

O encontro desses componentes resultou em uma estrutura ritual flexível, que possibilita a cada terreiro (templo) desenvolver formas próprias de culto, sempre mantendo a premissa de atender à comunidade por meio de orientações espirituais, passes energéticos e trabalhos de cura.

Crenças centrais

Apesar da diversidade existente entre as casas de Umbanda, algumas crenças são comuns a praticamente todas as vertentes:

Monoteísmo – Há a concepção de um Deus único, denominado Olorum ou Zambi, criador de tudo o que existe. Os Orixás não são deuses independentes, mas manifestações divinas ligadas a aspectos da natureza.

Orixás regentes – Cada pessoa teria afinidade maior com um ou mais Orixás, chamados popularmente de “Orixás de frente”. Esses vínculos são considerados influências sobre traços de personalidade, talentos e desafios pessoais.

Guias espirituais – São espíritos que, após vivenciarem experiências terrenas, alcançaram grau evolutivo capaz de permitir seu trabalho em favor de quem busca auxílio. Aparecem em linhas ou falanges específicas, utilizando simbolismos que remetem a períodos históricos ou grupos culturais.

Caridade e lei de retorno – A prática de ajudar o próximo é tida como a essência religiosa. A Umbanda sustenta que toda atitude gera consequências, positivas ou negativas, de acordo com a lei de causa e efeito.

Reencarnação – O ciclo de renascimentos sucessivos proporciona oportunidades de aprendizado e reparação de equívocos passados, rumo à depuração moral e espiritual.

Linhas de trabalho e entidades

Os guias que se manifestam por meio dos médiuns se apresentam em falanges distintas. Cada linha tem forma de expressão, indumentária simbólica e objetivo específico:

Pretos-velhos – Representados como antigos escravizados, transmitem conselhos em tom sereno e acolhedor. São associados à humildade, à paciência e à sabedoria adquirida pela superação de situações adversas.

Caboclos – Espiritualidades ligadas a ancestrais indígenas ou indivíduos conectados à mata. Trazem força, firmeza e conhecimentos fitoterápicos. Sua atuação inclui limpezas espirituais e estímulo à determinação.

Crianças (Erês ou Ibejis) – Entidades que se apresentam na forma infantil, simbolizando pureza, alegria e espontaneidade. Trabalham frequentemente na remoção de desequilíbrios emocionais e na quebra de influências negativas através de gestos lúdicos e doces.

Exus e Pombagiras – Atuam na chamada “linha da esquerda”, voltada à organização de caminhos e ao equilíbrio das leis cármicas. Exus são considerados guardiões e mensageiros, encarregados de disciplinar energias desordenadas. Pombagiras, em geral, operam aspectos ligados à autoestima, relacionamentos e justiça. Há distinção entre esses servidores e figuras demoníacas, inexistentes na cosmovisão umbandista.

Marinheiros – Trabalham com a energia dos mares, promovendo equilíbrio emocional, fluidez e clareza de pensamentos. Seus gestos remetem ao balanço das ondas e seu canto costuma evocar imagens marítimas.

Boiadeiros – Entidades ligadas à lida do gado e aos sertões. Transmitem coragem, disciplina e ordem. Costumam atuar em descarregos energéticos e fortalecimento da determinação pessoal.

A forma de manifestação dessas linhas ocorre durante a gira, reunião em que médiuns incorporados recebem os consulentes. Cada entidade, respeitando seu campo de atuação, pode aplicar passes, orientar decisões ou indicar tratamentos espirituais complementares, sempre sem fins financeiros.

Espaço de culto: o terreiro

Os templos umbandistas são denominados terreiros, tendas ou centros. Neles, a disposição física costuma incluir:

Congá – Altar principal que abriga imagens dos Orixás, velas, flores, frutas, copos de água e outros elementos simbólicos. O congá funciona como ponto de concentração de forças espirituais.

Assentamento dos atabaques – Conjunto de tambores ritmados durante a gira. O toque estabelece sintonia entre médiuns, entidades e participantes.

Área de atendimento – Espaço em que as consultas espirituais acontecem. Ali, cada guia recepciona o público, realiza passes e transmite orientações.

A gira tem estrutura variável, mas geralmente inicia-se com preces de abertura, seguida por cantos (denominados pontos cantados). As músicas chamam entidades específicas, harmonizando sala e médiuns. Durante a sessão, os participantes podem receber passes energéticos, realizar pedidos de aconselhamento ou, simplesmente, acompanhar os rituais em vibração.

Práticas associadas: passe e oferendas

O passe consiste na transmissão de energias promovida pelo médium, incorporado ou não, sobre o consulente. O objetivo é restaurar equilíbrio dos centros de força (chacras) e eliminar influências espirituais indesejadas. A técnica é silenciosa, sem contato físico marcante, baseando-se em gestos sobre a cabeça, costas e tórax.

Oferendas, chamadas de “entregas”, contêm elementos como frutas, flores, bebidas, folhas ou velas. São depositadas em pontos de natureza específicos a cada Orixá, simbolizando a gratidão e a conexão com forças naturais. Não há derramamento de sangue nos ritos umbandistas; o princípio é preservar a vida e utilizar produtos que se integrem ao meio ambiente sem causar dano.

Diferenças em relação a outras religiões

Embora compartilhe algumas noções com o Candomblé e com o espiritismo kardecista, a Umbanda apresenta propósitos e metodologias próprias.

No Candomblé, o foco central está na liturgia tradicional voltada aos Orixás, envolvendo toques de tambor específicos, cânticos em iorubá e, em certas casas, sacrifício de animais para fortalecer axé (força vital). A iniciação segue rígidos ritos de passagem, com hierarquia interna detalhada.

O espiritismo kardecista, por sua vez, privilegia reuniões de estudo doutrinário, palestras e sessões de desobsessão. Não há cantos, atabaques ou imagens no salão. A manifestação de espíritos ocorre de maneira contida, sem a teatralidade típica da incorporação umbandista.

A Umbanda combina a incorporação de guias, cânticos em português, uso de atabaques e linguagem popular, oferecendo atendimento imediato a questões do cotidiano. Desse modo, procura conciliar religiosidade, assistência espiritual e diálogo acessível aos frequentadores.

Esclarecimentos sobre práticas questionadas

Alguns equívocos costumam associar a Umbanda a rituais de feitiçaria ou a ritos envolvendo sofrimento animal. De acordo com seus princípios, qualquer ato que vise prejudicar terceiros contraria a lei de caridade e a lei de causa e efeito. A religião define magia negativa como prática externa ao seu escopo, enquadrada, em algumas classificações, como Quimbanda.

Quanto a sacrifícios, a Umbanda não utiliza animais em seus trabalhos. A vida é considerada sagrada e os recursos adotados nos rituais – velas, ervas, frutos, bebidas – simbolizam oferendas de natureza, nunca violência.

Mediunidade e participação do público

Muitos interessados questionam se a simples presença em um terreiro implica assumir compromisso mediúnico. A participação inicial acontece na assistência, área destinada a visitantes. Nessa condição, a pessoa recebe passes, pode conversar com entidades e acompanhar as giras. Tornar-se médium da corrente depende de chamado individual, aceitação pessoal e preparo gradual, que inclui estudo teórico, disciplina moral e acompanhamento dos dirigentes da casa.

Caminho para quem busca a Umbanda

O primeiro passo para entrar em contato com a religião é visitar um terreiro reconhecido por sua seriedade e dedicação à caridade. Antes da visita, recomenda-se:

– Obter referências sobre a casa, verificando se os trabalhos são gratuitos;
– Manter postura de respeito, vestimenta adequada e disposição para ouvir;
– Chegar com antecedência para entender a dinâmica do local;
– Após a gira, refletir sobre as orientações recebidas e, se houver interesse, retornar às atividades de forma periódica.

Além da frequência às giras, a Umbanda incentiva práticas diárias de elevação espiritual, como a oração, o estudo, o serviço voluntário e o cuidado com a natureza. Essas atitudes complementam os passes recebidos no terreiro, reforçando a proteção e o equilíbrio obtidos nos ritos.

Importância social e expansão

Ao longo de mais de um século, a Umbanda expandiu-se por todas as regiões do Brasil, adaptando-se a contextos urbanos e rurais. Seu valor social reside na oferta de ajuda espiritual gratuita, na promoção de ações solidárias e na criação de redes de apoio comunitário. Em muitos terreiros, campanhas de arrecadação de alimentos, doações de roupas e atendimento fraterno ocorrem paralelamente às atividades litúrgicas, aprofundando o compromisso com a cidadania.

Nos últimos anos, a religião também tem atravessado fronteiras nacionais, chegando a países vizinhos da América do Sul e a comunidades de brasileiros radicados na Europa. A internacionalização reforça o caráter inclusivo da Umbanda, que aceita praticantes de diferentes origens étnicas e credos anteriores.

Conclusão factual

Com raízes fixadas na cultura brasileira, a Umbanda consolidou-se como religião que conjuga devoção aos Orixás, mediunidade assistencial e forte vocação humanitária. Desde a fundação em 1908, seu propósito permanece centrado na caridade, na fraternidade e na integração entre o mundo espiritual e o mundo material. Para quem busca orientação, equilíbrio ou apenas deseja conhecer uma expressão de fé genuinamente nacional, a visita a um terreiro continua sendo a forma mais direta de observar os princípios umbandistas em prática.

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